Há cousa de três meses, no cinema, Shame causou boa impressão. Revisto há cousa de dois dias, a impressão já não foi tão boa. O que já gostava permaneceu intacto, o que pouco apreciava ainda apreciei menos, indo ao ponto da irritação. Tanto apraz o espírito com dilatações temporais desmesuradas ( magníficas cenas de sedução e quase consumação entre o tarado e a colega de trabalho, ou ainda o plano da discussão entre o punheteiro e a irmã- actores abandonados a hesitações e a embaraços), como cai na sordidez de montagens paralelas ridículas, uma musiquinha épica (que não é mais do que uma remix da Journey To The Line do Thin Red Line) para exteriorizar o "drama, o horror, a tragédia" do fodilhão, ou ainda coincidências de argumento saídas de um qualquer livro daquele guru dos argumentos que agora me escapa o nome, a saber: não me lembro de ter apanhado duas vezes a mesma boazuda no metro, ou o ainda melhor "este homem é tão fodilhão que, mesmo sendo hetero, vai com homens e tudo". No Hunger o McQueen já evidenciava visíveis sinais de esquizofrenia, com a total secura a conviver com planozinhos de passarinhos e bosquezinhos, que formosura e que deleite, mas aqui bate de chapa forte.
Como não vi o Shotgun Stories, abstenho-me de confirmar se Jeff Nichols é o bezerro de ouro número 897 a sair do púcaro do "cinema independente norte-americano". Por este Take Shelter, escreverei que a montanha pariu não um rato mas uma bactéria num prato da sopa do Cronenberg. Também aqui intromissão musical sem critério, e redundâncias várias no género terror movie. O ritmo contemplativo parece estar mais de acordo com os recentes e "ásperos" bocados de "cinema adulto" das Américas, artificialismo que não faz mossa nenhuma, mas que também não provoca maravilhas na mente. A partir de um determinado ponto (para aí a partir dos cinco minutos) começamos a contar o tempo até ao big payoff; ele lá surge, com a mulher do Shannon (melhor actor do mundo?) a abanar a cabeça, como quem diz, "sim, amor, tinhas razão, sou uma cadela imunda por não ter acreditado em ti nem ter visto nenhum filme do Shyamalan. Coça-me".
O Eastwood lá continua com o seu enorme despudor em realizar filmes após- Gran Torino. Não tem emenda, este homem. Não segue os bons conselhos que lhe dão e, pior ainda, ´tá-se a cagar. Continua com a mesma escabrosa delicadeza, o mesmo impertinente retrato de sombras, a mesma desgraça em continuar a investigar a Mentira, o mesmo desplante em agrupar as mais belas e harmoniosas peças musicas do cinema actual. Neste J. Edgar vai ao ponto de estabelecer uma relação homossexual sem que planos de caralhos surgam no horizonte, uma terrível afronta aos tempos modernos. Inebriante putrefacção a magnificiência. Era agarrar em ti, Clint, e atirar-te para o meio da secretária do Vasco Câmara, enquanto ele te torturava com mais uma visão daquela coisa do Tocha. Seu bandido.
E agora, silêncio, que se vai beber um vinho do Porto. Acabada há pouco a terceira visão de Le Havre, fui à imunda cozinha buscar uns lenços para limpar as lágrimas que corriam discretamente desde o primeiro plano, quando reparei que não havia lenços, mas sim uma mosca-varejeira no prato, a debater-se gulosamente com um bocado de resto de presunto. Ao ver Le Havre, também me sinto uma mosca-varejeira a sorver cada atómo desta genialidade tão bela que nem sequer encontro palavras no dicionário Houaiss para a descrever. Impressionante a quantidades de doces neste filme: cigarros a acenderem-se, pão a molhar-se em ovos, copos de vinho branco, baguetes, humor extraterrestre (adoro a sociedade. quer comprar alguma coisa?- sim, um ananás), um gira-discos, um pseudo Johnny Halliday a cair de podre, a dicção do Andre Wilms, a convocação do Simenon, o Léaud a cair de podre, as grandiosas casas-museu de Kaurismaki, a noite na Normandia, cães a arfar, floristas, um zoom milagroso e ainda mais, é só ver. Espanto de detalhes. Melhor filme do ano. De longe.
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