quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Conjunto de palavras sobre "Os Conselhos da Noite", de José Oliveira.

Para angariar os meus mais básicos níveis de simpatia, um filme que tenha data de produção pós-2005 (também pode ser 2004 ou 2006) tem de possuir, para começar, duas cousas em franco desuso nos dias de hoje, dias do “há que prestar primeiro atenção ao sentir do mundo contemporâneo”, escola do Professor Shambu: um trabalho de composição com peso, conta e medida e uma aplicação esparsa de sons fora da órbita interna do filme (isto é, parem de martelar música a despropósito; umas vezes uma pessoa quer ouvir o som de umas botas a enterrarem na terra e só ouve a merda da música). Como sou homem modesto, de pequenos prazeres, essas duas características do filme já me elevam a moral e não me fazem abdicar da visão do mesmo ao fim de 15 minutos. O “Os Conselhos da Noite” possui as duas matérias em questão, portanto, o meu agrado com o filme começa aí. A música, ambiental e ocasional, está nos “sítios e tempos corretos”, jamais entrando pelo filme adentro como um bulldozer numa loja de memorabilia cinéfila, e os planos, todos de fação clássica, de escala média ou geral (ou super-hiper-geral, como no magnífico plano de abertura), estáticos ou com leves movimentos de câmara, com recurso limitado ao campo/contracampo entre personagens: está tudo muito bem, só não estando “tudo” bem porque há lá uma correria num jardim com suspeitosos cortes e tons malickianos (salve-se quem puder!). Mas deixemo-nos dos amantes em fuga pelo jardim, e continuemos nos prazeres, começando pelo humor corrosivo e hilariante nos vários tablexaux que se vão espraiando pelo filme, desde aquele em que um jovem debita uma miríade de clichés sobre as virtudes do bem vestir e do empreendedorismo até a uma sequência after hours numa roulote que não estaria mal como uma das deleted scenes das sequências texanas do “Wild At Heart”. Ou ainda uma história de um hambúrguer cortado com faca e garfo ao balcão (em Nova Iorque, nos anos 90, era assim que se cortavam os snickers).O Tiago Aldeia, ao ralenti, tanto na forma de se mover como de se expressar, está em sincronização perfeita com o ritmo cadenciado e relaxado da obra (jamais esquecer palavras eternas do Kiarostami: "gosto de filmes que me ponham quase a dormir"), ritmo esse sempre uno, mesmo com as alterações de registo que vão acontecendo. Há tempo e espaço para se apreciar a duração de beber um copo de tinto, um café ou um whisky. Há duas das mais estonteantes dançarinas de dança do ventre na “magia da história do cinema “ . Um jantar familiar bem regado e com broa da boa sintetiza em pouco mais de um minuto as dinâmicas e os ressentimentos entre o protagonista e os pais. O filme continua e nós de corpo entorpecido. Os céus enevoados de Braga, que melhor não ficariam com recurso a digitalizações. Passamos dos sagrados silêncios das igrejas e mosteiros para uma palhaçada electrónica na noite da cidade, mas nem damos por isso: continuamos distendidos. Quando damos por nós, acaba o filme. E temos pena de ter deixado de fumar, pois um café, um cigarrinho e um copo de whisky, depois de se ver “Os Conselhos da Noite”, decerto que nos proporcionaria tanto ou maior prazer do que aquele que teríamos em ter uma dança particular de cada uma das meninas da dança do ventre.

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