terça-feira, 24 de março de 2015

O homem que andava á procura de mulheres que gostassem do "Titanic" (parte 2)


Acordei. O relógio na mesinha dizia que eram 02:57 am. Sendo assim, e se as contas batiam certo, tinha estado de cama nas últimas dezanove de vinte e quatro horas. Fome. Muita fome. Levantei-me e procurei pela alimentação dentro do frigorífico, nas prateleiras, na casa de banho, no caixote do lixo, mas nem vestígio de uma garrafinha. Lá teria de ir ás compras. Abri a porta, saí, mas voltei a fechá-la  e a entrar. Tinha-me esquecido de vestir. A loja de conveniência mais próxima , por sorte, era mesmo próxima, e foi lá que me fui abastecer para as próximas horas: meia dúzia de garrafas de Brandy e dois pacotes de Pringles. Felizmente tinha deixado de fumar havia coisa de um mês. Coronel, alguma da sua massa já foi, dizia eu de mim para mim enquanto saía da loja. A caminho de casa encontro, de surpresa, o Pete “Musketeer” Murray, que assim se chamava porque sempre que se envolvia em qualquer discussão simulava que brandia uma espada imaginária na direcção do seu rival. Bom tipo. Teve uma vez na prisão porque espetou uma espada verdadeira na testa de um seu primo. Já o utilizei como informador em alguns casos, mormente o famoso “Sweet Tooth vs Johnny Gamboia”, esse mesmo, o das bolas de naftalina. Cumprimentámo-nos e perguntei-lhe que fazia por ali àquela hora. Disse que ia ter com o Mischka ao local do costume. Ah, mas ele não estava à porrada com a mulher, perguntei. Sim, mas colocou-lhe uns comprimidos no leite e ela só deve acordar daqui a três dias, disse o Pete, a rir. Eu disse que se fosse mais cedo também iria, mas que já era muito tarde e estava cansado e cheio de fome e amanhã teria de ir ter com o Coronel Johansson bem cedo, ás três da tarde. O coronel Johansson?, questionou o mosqueteiro, já em poças de riso. Como deves saber, a minha irmã mais nova é lá empregada de cozinha, e sabes o que lhe constou? Que ele anda a procurar saber se existem mulheres que gostam do Titanic! Sim, o filme! Anda á procura de gambuzinos, o homem! Nem os moinhos de Cervantes se aproximam disto! É o pagode naquela casa! A minha irmãzinha diz que a Senhora está sempre com piadas para com o Coronel e os próprios criados, a custo, contém o riso perante estas matérias!, e já o Peter se contorcia no chão . Depois de enxugar as lágrimas e de se restabelecer, colocou o indicador nos lábios e disse  não seria bonito se o velho senhor te tivesse chamado para tratar desta palermice? E começou de novo a rir ao mesmo tempo que desembainhava uma espada invisível e a brandia para todas as direcções possíveis. Também eu me ria, mas nervosamente, e assim nos despedimos, embora o riso do mosqueteiro fosse audível por mais alguns segundos. O Coronel não me pode pregar uma destas, pensava eu, já antecipando as gozações e os gargalhos do povo perante a minha pessoa. É a minha reputação em jogo, e assim ia, a caminho de casa, quando uma jovem passeava com o seu cão. Depois de lhe dizer boa noite, perguntei-lhe se poderia saber da sua opinião sobre determinado assunto. São azuis, disse ela, perante o meu espanto. Azuis? De que fala? Da cor das minhas cuecas. Não é isso que quer saber? Por favor, não me faça mal. Eu até baixo a saia para lhe mostrar! Por favor!, dizia, já quase a gemer. Nada disso, minha senhora. Controle-se. Não quero saber nada disso. Tome este lenço. Está melhor? Estou sim. Obrigado por não ser um desses pervertidos. Apeteceu-me perguntar-lhe porque andaria ela a estas horas pela rua, se tinha tanto medo “desses pervertidos”, mas deixei isso de lado. Sem demoras, perguntei:” Ouça, a menina gosta do Titanic?”

Quando entrei em casa deitei os sacos em cima da mesa e liguei o atendedor de chamadas. O Mischka tinha telefonado a perguntar se queria ir ao local do costume. Desculpa lá, fica para a próxima. Abri uma garrafa e despejei um bom bocado para dentro da garganta. Sentindo-me melhor, dirigi-me para a casa de banho, onde tratei de fazer a necessidade numero um e de colocar abundante água no olho direito, o mesmo que tinha sido atingido por um murro da donzela com o cão. Isto fazia-me ter maus pressentimentos. Regressei á sala, coloquei gelo no olho, bebi mais uns bons goles, abri os Pringles e desbastei uma dúzia de batatas de uma vez só e deitei-me na cama, a continuar a ler o livro do cineasta português. Desta vez, ele contava como tinha conhecido o protagonista dos seus futuros filmes. Adormeci, pouco depois.