Acordei com os últimos raios de Sol a
entrarem pelas frinchas da persiana. O relógio marcava 6:25 pm, e lá
fora parecia-me já ouvir o Stan Williams a gritar aos filhos para
virem para casa. A cidade é perigosa. Levantei-me e fui tomar o
pequeno-almoço: meia garrafa de brandy e um rissol de anteontem
deixado ao acaso no frigorífico. Estava muito calor mas eu nem
ventoínha tinha, valha-me Deus. Acabada a refeição, fui buscar o
monte de cartas que se reuniam junto á porta. Contas a pagar, um
convite para uma sessão espírita com a Professora Viúva Azul,
publicidade a canalizadores e a novas tarifas para o “seu
telemóvel”. E no fim, um envelope azul enviado pelo Coronel
Bradley Johansson, que se a memória não me falhava, devia ser o
mesmo homem que tinha feito fortuna a vender terrenos a preços
inflacionados há coisa de quarenta anos, histórias que o meu papá
me contava quando ainda andava de chucha na boca. “ O Bradley, esse
épico homem. E a mulher ainda melhor, filho meu”, dizia ele, a dar
bafuradas no charuto. As outras missivas voaram para o lixo e atirei
com a carta do Coronel para cima da mesa. Só agora reparava que
estava nú; tanto melhor. Mais um copo de brandy, sentei-me e abri o
envelope. E rezava assim:
Caro Senhor,
Como deve saber, eu tenho estado muito
atento aos seus recentes êxitos no mundo da investigação. Admiro
imenso os seus resultados nos caso da descoberta da versão original do "Greed", aquele outro da mulher que enganava o pai com a
própria mãe e que o senhor brilhantemente desvendou numa célebre Véspera de Natal, ou, sobretudo, o seu retumbante sucesso na
intrincada rede de cosméticos e produtos agrícolas que envolvia a
família Forrester. Juntando a isto, tive a investigar o seu passado
familiar e as impressões não poderiam ser melhores, sobretudo as
providenciadas a respeito do seu falecido pai, de quem a minha própria esposa
diz maravilhas. Tudo isto para esclarecer que tenho plena confiança
em si, e por isso encarrego-o de trabalhar para mim num caso bicudo
que me atormenta há quase vinte anos e para o qual não tenho
encontrado solução. A minha esposa ri destes meus propósitos, mas
acha muito bem que o chame para vir trabalhar comigo, nem que seja
para ter a confirmação de que é semelhante ao seu defunto pai, o
mesmo de que ela tece admirações múltiplas. Como prova da minha
seriedade e perseverança, aí tem 10 mil dólares de avanço.
Dinheiro que será uma mera esmola quando lhe pagar os honorários
finais, nesse momento em que tudo será descoberto, o qual estou
seguro que acontecerá. Enviarei amanhã uma limusina para a sua
residência, que o trará aos meus humildes aposentos, onde
discutiremos civilizadamente o que me preocupa e outros sucessos. 15
horas parece-lhe bem? Escusa de confirmar, apenas esperarei por si com
toda a ansiedade. Olhe que se não vier irá perder um faisão assado
com batatas a murro que é divinal. E a minha esposa não lhe
perdoará, ela até já está a observar, deleitada, quais os
vestidos mais decotados que possui.
Com os melhores cumprimentos,
Coronel Bradley Robson Johansson
Dez mil dólares, faisão assado e
provavelmente outras mordomias. “Não direi que não”, pensei eu.
O único problema era a hora madrugadora a que viria a limusina, mas
nada que não se contornasse com certa dose de boa vontade. Lá estarei,
Coronel, dizia eu de mim para mim. Esfregando as mãos, bebi o resto
da garrafa e telefonei ao Mishka, um russo que tinha conhecido há
meia dúzia de anos, no caso “ Sue Michaels vs Joe Joe”, um dos
mais suados da minha carreira. O Mishka, que vivia há trinta anos na
cidade mas ainda conservava forte sotaque, respondeu que não podia
ir hoje ao local do costume, que tinha de fazer as pazes com a mulher
(que era japonesa com ligações á yakuza), senão ainda iria ter
problemas e dos grandes. Tanto pior. Sairia mais tarde, nem que fosse
para dar uso a algum do bago recebido. Entretanto, decidi-me a
fazer nada. Saltei para a cama, e continuei a ler um pequeno livro de
conversas com um cineasta português, que muito desgastado estava com
os camiões e máquinas de filmar a entrarem pelo bairro. Adormeci,
pouco depois.