segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Vilhena para sempre

JOSÉ VILHENA: TENHO MAIS FAMA DO QUE PROVEITO

Corrosivo, satírico, mordaz. Nasceu em 1927 e é o decano da caricatura portuguesa. Editor de uma revista única no nosso País, os seus desenhos são tidos como picantes, mas ele jamais os considera pornográficos. Uma entrevista com humor:

Como é que lhe nasceu o gosto pela caricatura satírica?

Sempre gostei de desenhar. Nos anos 40, segui para a Escola de Belas Artes, no Porto e cursei Arquitectura. Porém, tinha começado a fazer desenhos para jornais e acabei por abandonar o curso.

Em que jornais colaborava?

“Diário de Lisboa”, “Cara Alegre” e “O Mundo Ri” foram alguns dos jornais e revistas onde comecei a fazer desenhos e textos humorísticos, nos anos 50, alternando com trabalhos em publicidade e anedotas ilustradas.

O semi-secretismo em que viveu durante o Estado Novo fez com que nascesse um culto em seu redor?

Até certo ponto, sim. Recordo-me que tinha sempre um número de leitores fiéis que compravam os meus livros, porque conheciam o tipo do quiosque e pediam-lhe para que guardasse uma nova obra quando ela chegasse. Aqueles estavam sempre garantidos.

Nesses livros satíricos, a componente erótica já era elevada?

Nem por isso. Nos meus livros, aproveitava para dar cacetada no Estado Novo, criticar a conjuntura política e, principalmente, social. O que me causou muitos problemas com as autoridades.

Sabia que a PIDE ia censurá-lo?

Eles estavam sempre muito atentos, por isso tive sempre muito cuidado. Ao mesmo tempo, também tinha de fazer piadas que as pessoas pudessem entender, desenhar para que determinada piada passasse nas entrelinhas. Era um desafio muito grande para mim.

Desenhava já a pensar que determinado cartune podia ser apreendido?

Tinha essa consciência, pelo que não só eu, como toda a gente no meio, funcionava por auto-censura. À partida, sabíamos que existiam certos limites que não podiam ser transpostos. Mas muitas vezes arriscávamos. Umas passavam, outras não.

Havia vários níveis de censura?

Havia. E dependia ou do humor do revisor naquele dia ou do local onde publicasse os desenhos. Por exemplo, certos desenhos para o “Diário de Lisboa” podiam ser apreendidos e um ou dois meses mais tarde eram publicados numa revista humorística, que aí já ninguém levava a mal. Existia essa consciência de quem comprava o quê, e de quais as restrições em cada tipo de publicação.

Considera os seus desenhos satíricos e fotomontagens de cariz pornográfico?

Todos os grandes humoristas têm desenhos ostensivamente pornográficos. Mas não, não os acho pornográficos.

 É verdade que um dia chegou mesmo a dirigir-se à sede da PIDE, na rua António Maria Cardoso, com um carrinho de mão cheio de livros seus para entregá-los pessoalmente, poupando-lhes trabalho?

Isso é puro mito. É mentira. Não sou doido e jamais iria meter-me na boca do lobo. Mas chegaram a confiscar uma edição de um livro meu antes mesmo de ele sair da gráfica. Foi uma edição completa ao ar.

Mas não é com certeza mentira que foi preso por três vezes…

Sim. Por causa dos meus livros e desenhos fui parar em três ocasiões à sede da PIDE [1962, 1964 e 1966]. Só numa delas é que me meteram um processo, do qual, felizmente, nunca fui a julgamento devido a uma amnistia do presidente Américo Tomás.

Sofreu muito nos calabouços?

Não. Tínhamos celas individuais, para não existir o risco de passarmos informações, e fui sempre muito bem tratado. De mim não havia nada a tirar. Tudo o que eu sabia estava escrito nos livros, pelo que o único grande problema era não saber quanto tempo iria estar lá preso. Podiam ser três meses ou três anos. Para evitar que tal acontecesse, fugia sempre que editava um novo volume.

Como é que isso acontecia e onde é que ficava escondido?

Sabia que, quando o livro saísse, não podia ficar em casa, pois no dia a seguinte era quase certo que fossem lá bater à porta para me apanhar. Fazia a mala e ia para um motel na marginal de Cascais, com vista para o mar e tudo, do qual saía ao fim de uma semana, pois a partir daí já não havia problemas em regressar a casa.

Depois dessas aventuras, e com o advento do 25 de Abril, tornou-se mais difícil fazer caricatura política?

A apreciação só pode ser feita pela diferença. Enquanto no Estado Novo o inimigo era só um, com a democracia eu podia disparar em várias direcções, fosse à esquerda ou à direita, pelo que havia mais inimigos.

A 15 de Maio de 1974 sai o primeiro número da “Gaiola Aberta”, que tinha um pouco de tudo: fotonovela (satírica), crónica, banda desenhada... A liberdade deu-lhe, ou não, mais espaço para a criatividade?

Já não tinha a polícia política a importunar-me e pude desenvolver um tipo de humor mais aberto. Mas ainda houve pessoas que, por viverem um bocado o espírito do Estado Novo, ficaram muito aborrecidas com determinadas piadas e processaram-me. Creio que foram sempre aquelas sem nível ou humor, que viram nisso uma oportunidade de ganhar mais dinheiro. Vejam bem: o [Mário] Soares foi dos tipos mais satirizados por mim e nunca me pôs qualquer problema.

 Na década de 80, teve alguns problemas com a princesa Carolina do Mónaco. Como é que resolveu a situação?

Foi uma fotomontagem, em Novembro de 1981, onde mostrava a princesa Carolina do Mónaco numa pose muito… especial.

O que é que ela estava a fazer?

Aquilo era uma paródia a um anúncio de uma marca de brandy. Coloquei a princesa a aquecer o seu copo de uma maneira... original. O principado do Mónaco processou-me exigindo 400 mil dólares, acho eu. Estive oito anos para resolver o problema. Mas acabou por me ser retirada a queixa.

Actualmente, sabe-se que ainda tem pendentes alguns processos contra si. É verdade?

Como já disse, há pessoas sem sentido de humor. As minhas fotomontagens n’O Moralista’, com várias estrelas da televisão, deram realmente origem a inúmeros processos. Mas foi tudo algo esporádico, tendo em conta que aquilo foi uma série temática com mais de vinte personalidades.
Foram os casos de Catarina Furtado e Bárbara Guimarães, que pareciam posar nuas na capa d’O Moralista’… Quem visse aquilo sabia logo que era brincadeira. Mas acabei por chegar a acordo com todos os advogados das visadas. Todos menos com os de Margarida Marante. Acho triste. Ela devia era ficar contente porque aquela fotomontagem acabou por promovê-la.

Onde é que foi buscar aquelas fotografias de mulheres nuas?

Tinha algumas fotos espalhadas por aí…

Por falar nisso, e pegando nas “mulheres, muitas (e bonitas) mulheres” que povoam o imaginário de Vilhena, segundo o texto de Rui Zink, é no pós-25 de Abril que cresce o lado erótico da sua caricatura?

Não considero que os meus desenhos sejam todos eróticos. De resto, e quanto a viver rodeado dessa luxúria, sempre tive mais fama do que proveito (risos).
Mas as suas personagens femininas estão muitas vezes despidas ou com umas poucas peças de roupa… Penso que é mais erótico a existência de uma liga, de uma camisa de noite ou de um soutien um pouco descaído. O que está por mostrar é sempre mais erótico. Um corpo nu não faz apelo à imaginação. Já imaginaram as modelos a desfilarem nuas? Não teria qualquer tipo de ‘glamour’.

É esse o segredo da longevidade das suas revistas de humor?

Não. Considero que o segredo está no facto de todas as fases de concepção serem controladas apenas por mim. Sempre trabalhei sozinho, o que me permite não ter muitas despesas com colaboradores. Até porque os anunciantes não querem ver os seus produtos publicitados ao lado deste tipo de textos. Têm muitos preconceitos.

Não há concorrência neste campo das revistas satíricas em Portugal…

... e é uma pena, porque a concorrência só seria benéfica para mim. Obrigava-me a fazer sempre melhor. Mas parece que os grandes grupos económicos de comunicação têm medo de levar a cabo este tipo de trabalho. Se juntássemos esses caricaturistas que andam por aí a trabalhar nos jornais, poderia fazer-se coisas muito engraçadas. Mas muitos anunciantes não gostariam disso.

 O povo português perdeu o sentido de humor?

Não sei. Mas é indecente vivermos num País onde não se publica uma única revista de humor. Em qualquer país europeu há várias revistas do género.

O DECANO DA ARTE ERÓTICA

José Vilhena nasceu a 7 de Julho de 1927, em Figueira de Castelo Rodrigo, filho de um pequeno proprietário agrícola e de uma professora primária. Passou a infância na aldeia de Freixedas, perto da Guarda. Aos dez anos, foi para Lisboa estudar. Depois da tropa, foi para a Escola de Belas Artes, no Porto, e cursou arquitectura. Porém, tinha começado a fazer desenhos para jornais e abandona o curso a meio. “Diário de Lisboa”, “Cara Alegre” e “O Mundo Ri” são algumas das publicações onde trabalha nos anos 50. Na década seguinte, desenvolve a actividade de escritor satírico. Os seus livros são apreendidos pela PIDE e é preso por três ocasiões.

Até ao 25 de Abril de 1974, escreve cerca de 70 livros. Nesse ano, sai o primeiro número da sua revista, “Gaiola Aberta”. Volta à carga com “O Fala Barato”. “O Cavaco” seria a publicação seguinte, mas a experiência acabou quando Cavaco Silva saiu de São Bento, em 1994. O seu projecto mais recente é “O Moralista”, onde adopta métodos de comunicação mais modernos. Independentemente das críticas ao seu trabalho, Vilhena é hoje considerado um dos maiores ilustradores, caricaturistas e humoristas da Nação.