Locarno, 17/08/2019.
Cinéfilo 1(CN1): Aí está!
Cinéfilo 2 (CN2): (de braços para cima e olhar para o céu): Há justiça neste mundo!
CN1: Vamos comemorar, compadre!
CN2: Vamos sim. Milagres e situações inesperadas como esta merecem o mais retumbante contentamento.
Cinéfilo 3 (CN3): ( a corrrer, esbaforido, língua de fora, cabelo desarrumado e gravata amarrotada): Companheiros! Amigos! Tratai de vir já comigo!
CN1: Que se passa, compadre?
CN3: (a arfar): Sucessos maldosos que acabam de acontecer diante dos meus e dos olhos dos outros nossos amigos! Vinde, vinde!
CN2: Que desventuras maldosas poderiam ocorrer num dia de tamanho rejúbilo?
CN3: Já as verás, amigo! Preparai-vos para ter muito sangue frio!
CN1: Vamos, então.
Lá vão os três amigos, chegando pouco tempo depois a um armazém abandonado, onde se encontram mais quatro homens. Um deles está sentado numa cadeira, vendado, com as mãos amarradas atrás das costas, um lenço dentro da boca e a cara envolta numa papa de sangue.
CN3: (apontando para o homem na cadeira): Aí está ela, a razão dos nossos problemas.
CN2: (coçando a cabeça): E eu que esperava estar agora a beber umas belas e geladas cervejinhas...Bom, vamos lá tratar disto. Que nos traz aqui?
Cinéfilo 4 (CN4): Este sujeito sem escrúpulos, depois de entregue o grandioso prémio a Sua Divindade, disse, alto e a bom som, e sem o mínimo dos decoros, que considerava "Vitalina Varela" uma obra-prima, mas...NÃO MELHOR QUE OS ANTERIORES FILMES DE SUA SANTIDADE!
Exclamações de horror. CN1 vomita. CN2 desmaia. CN1 vomita no corpo desmaiado de CN2. CN4 assoa o ranho. Cinéfilo 5 chora com as mãos nos olhos. CN2 levanta-se, com a cara coberta de vómito, aperalta as roupas, e retira um pequeno livrinho do bolso interior do casaco. E enquanto agarra o livrinho, diz assim: Vamos então ouvir o que este bandalho tem para dizer. É verdade o que disseste, malfeitor?
Homem na cadeira (Hnc): Sim, é!! Mas se julgais que me arrependo, estais enganados! Não mudo uma vírgula ao que disse!
Sonoras reprovações ecoam pelo edifício. CN2 pede silêncio, abre o livrinho, folheia as páginas, pára numa e assim diz: Lei 45, Artigo 3º, Cinefilia: "É absolutamente proibido considerar um novo filme de Pedro Costa inferior ao (s) seu (s) anterior (es), mesmo que se considere que todos eles são indiscutíveis obras-primas. O não cumprimento desta lei significará a proibição de frequentar a Cinemateca por cinco anos, além da proibição de ouvir Punk dos anos70 e de dizer frases como "Não resta nada do 25 de Abril de 1974"". Sabeis disto, não sabeis, gatuno?
Momento de silêncio. Hnc começa a lacrimejar, pensando nos privilégios que poderá estar prestes a perder. Os outros cinéfilos, vendo o sofrimento da sua vítima, esboçam sorrisos, antevendo mais uma vitória da LEI. Por fim, Hnc diz, em voz embargada:
Hnc: Desculpai! Desculpai! Algo murmurou aos meus ouvidos estas hediondas ideias! Obra de Belzebú! Peço perdão! Perdão! (choro compulsivo)
CN1 aproxima-se de Hnc, coloca a mão direita na sua cabeça prostrada, e diz, solenemente: O cinema de Sua Santidade tornou-nos bondosos e inundou o nosso coração de irmandade. Estais perdoado!
E CN1 retirou as cordas, e limpou a face, e deu um abraço a Hnc. E todos se abraçaram, durante longo tempo, num silêncio que durou uma eternidade. E Hnc, alagado de alegria e de desejo de recompensar os seus amigos, disse que os poderia levar junto de bandidos que consideram os filmes de Sua Santidade apenas "imprescindíveis" segundo a classficação do Público dos anos 90", ou perante outros, que possuíam e advogam uma análise crítica à obra da Divindade, a ideia mais blasfémica de todo o sempre. E eles lá foram, a caminho de mais justiça cinéfila. E tudo acabou bem.