Com a morte de Abbas Kiarostami,
trememos e tememos. Trememos: e agora, existirá outro cineasta tão capaz de a
cada filme nos desarmar, de nos fazer amar os seus filmes, misteriosos e belos?
Godard, sempre à frente, já previra que o cinema acabava com Kiarostami. No
entanto, o desaparecimento de um enorme cineasta, nosso contemporâneo, faz-nos
ainda temer, porque achamos que a este “menos um” não se vai contrapor um “mais
um”.
Falar-me-ão os mais optimistas de
outros cineastas fabulosos e das múltiplas formas que temos para lhes aceder
(um acesso democrático, chamar-lhe-ão), ao contrário de tempos passados, em que
as Cinematecas ocupavam o lugar-templo do espectador-religioso (seriam elas
ditadoras?).
Vamos imaginar que estes
optimistas me falam do Jia Zhang-ke e do Pedro Costa – de facto, dois cineastas
magníficos – e que esplendoroso é o tempo em que podemos descobrir os seus
filmes no momento em que eles são exibidos pela primeira vez; imagine-se, um
cineasta que trabalha marginalmente num pequeníssimo país da União Europeia e
outro do mais poderoso país da Ásia. Poderíamos nós, se espectadores em 1963,
descobrir ao mesmo tempo o “Verdes Anos”, do Paulo Rocha, e um grande filme
chinês desse ano (desculpem-me a falta de exemplo, mas conheço mal o cinema
chinês)? E mais para trás, então? Convenhamos que, se não impossível, a
dificuldade era certamente muito maior.
Se foi possível, antes desta
“democratização do acesso”, o mundo chegar a cineastas tão “distantes” uns dos
outros, creio que isso se deve à escavação feita por espectadores-programadores. E se acho essa escavação importante, não o é por causa de nenhum
romantismo bafiento, mas porque essa escavação vinha já acompanhada de um
pensamento crítico sobre o que se tinha
visto e o que se ia mostrar. A programação obedecia a ideias.
Hoje não é preciso escavar para
chegar ao Jia Zhang-ke e ao Pedro Costa. Basta consumir. Porque embora muito
melhores cineastas do que, sei lá, o Nicolas Refn ou o Xavier Dolan, eles nos
chegam exactamente pelo mesmo canal – o mercado. Satisfazem nichos de mercado. É sintomático que os grandes festivais (e os pequenos?)
tenham os seus mercados, onde os filmes são transaccionados para depois serem
disponibilizados a consumir. Um Refn com o Goslign vale x, um Costa com o
Ventura vale menos – mas tem valor de mercado e rentabiliza-se. Onde está o
pensamento crítico do escavador? Não deixou de existir pensamento crítico, mas
ele está dissolvido no meio dos publicitários e é preciso muito esforço para o
encontrar. Em Cannes, Xavier Dolan ganha o Prémio do Júri, ex-aequo com
Jean-Luc Godard. Vale tudo porque, no mercado, tudo vale – e porquê valorizar
um, se podemos valorizar dois?
Nada disto é novo. O que é “novo”
é Abbas Kiarostami já não estar entre nós. E, um dia, distante espera-se, Jia
Zhang-ke e Pedro Costa deixarão de estar também. O que me pode dizer o
optimista sobre o possível cenário desse futuro, em que essencialmente teremos
cineastas logo laureados à primeira obra, porque não há tempo a perder para
valorizar? Recordemos que, por exemplo, Pedro Costa (mais até do que Jia
Zhang-ke) ainda foi sendo descoberto internacionalmente de forma “devagar”.
Nesse futuro, definitivamente,
não existirá mais a figura pública de escavador, substituído pelo comerciante e
pelo consumidor. Sem lugar nas salas de cinema, onde antes ditatorialmente se
programava, o escavador, clandestino, viverá a sua democracia online, recluso em casa, digitando uma
senha em sítios obscuros para poder ver “outros” filmes.