Acordei. O relógio na mesinha dizia que eram 02:57 am. Sendo
assim, e se as contas batiam certo, tinha estado de cama nas últimas dezanove
de vinte e quatro horas. Fome. Muita fome. Levantei-me e procurei pela
alimentação dentro do frigorífico, nas prateleiras, na casa de banho, no
caixote do lixo, mas nem vestígio de uma garrafinha. Lá teria de ir ás compras.
Abri a porta, saí, mas voltei a fechá-la e a entrar. Tinha-me esquecido de vestir. A
loja de conveniência mais próxima , por sorte, era mesmo próxima, e foi lá que
me fui abastecer para as próximas horas: meia dúzia de garrafas de Brandy e
dois pacotes de Pringles. Felizmente tinha deixado de fumar havia coisa de um
mês. Coronel, alguma da sua massa já foi, dizia eu de mim para mim enquanto
saía da loja. A caminho de casa encontro, de surpresa, o Pete “Musketeer”
Murray, que assim se chamava porque sempre que se envolvia em qualquer
discussão simulava que brandia uma espada imaginária na direcção do seu rival.
Bom tipo. Teve uma vez na prisão porque espetou uma espada verdadeira na
testa de um seu primo. Já o utilizei como informador em alguns casos, mormente o famoso “Sweet Tooth vs Johnny Gamboia”, esse mesmo, o das bolas de naftalina.
Cumprimentámo-nos e perguntei-lhe que fazia por ali àquela hora. Disse que ia
ter com o Mischka ao local do costume. Ah, mas ele não estava à porrada com a
mulher, perguntei. Sim, mas colocou-lhe uns comprimidos no leite e ela só deve
acordar daqui a três dias, disse o Pete, a rir. Eu disse que se fosse mais cedo
também iria, mas que já era muito tarde e estava cansado e cheio de fome e
amanhã teria de ir ter com o Coronel Johansson bem cedo, ás três da tarde. O
coronel Johansson?, questionou o mosqueteiro, já em poças de riso. Como deves saber,
a minha irmã mais nova é lá empregada de cozinha, e sabes o que lhe constou?
Que ele anda a procurar saber se existem mulheres que gostam do Titanic! Sim, o
filme! Anda á procura de gambuzinos, o homem! Nem os moinhos de Cervantes se
aproximam disto! É o pagode naquela casa! A minha irmãzinha diz que a Senhora
está sempre com piadas para com o Coronel e os próprios criados, a custo,
contém o riso perante estas matérias!, e já o Peter se contorcia no chão . Depois
de enxugar as lágrimas e de se restabelecer, colocou o indicador nos lábios e
disse não seria bonito se o velho senhor te tivesse chamado para tratar desta
palermice? E começou de novo a rir ao mesmo tempo que desembainhava uma espada invisível
e a brandia para todas as direcções possíveis. Também eu me ria, mas nervosamente,
e assim nos despedimos, embora o riso do mosqueteiro fosse audível por mais
alguns segundos. O Coronel não me pode pregar uma destas, pensava eu, já
antecipando as gozações e os gargalhos do povo perante a minha pessoa. É a
minha reputação em jogo, e assim ia, a caminho de casa, quando uma jovem
passeava com o seu cão. Depois de lhe dizer boa noite, perguntei-lhe se poderia
saber da sua opinião sobre determinado assunto. São azuis, disse ela, perante o
meu espanto. Azuis? De que fala? Da cor das minhas cuecas. Não é isso que quer
saber? Por favor, não me faça mal. Eu até baixo a saia para lhe mostrar! Por
favor!, dizia, já quase a gemer. Nada disso, minha senhora. Controle-se. Não
quero saber nada disso. Tome este lenço. Está melhor? Estou sim. Obrigado por
não ser um desses pervertidos. Apeteceu-me perguntar-lhe porque andaria ela a
estas horas pela rua, se tinha tanto medo “desses pervertidos”, mas deixei isso
de lado. Sem demoras, perguntei:” Ouça, a menina gosta do Titanic?”
Quando entrei em casa deitei os sacos em cima da mesa e
liguei o atendedor de chamadas. O Mischka tinha telefonado a perguntar se queria
ir ao local do costume. Desculpa lá, fica para a próxima. Abri uma garrafa e
despejei um bom bocado para dentro da garganta. Sentindo-me melhor, dirigi-me
para a casa de banho, onde tratei de fazer a necessidade numero um e de colocar
abundante água no olho direito, o mesmo que tinha sido atingido por um murro da
donzela com o cão. Isto fazia-me ter maus pressentimentos. Regressei á sala,
coloquei gelo no olho, bebi mais uns bons goles, abri os Pringles e desbastei
uma dúzia de batatas de uma vez só e deitei-me na cama, a continuar a ler o
livro do cineasta português. Desta vez, ele contava como tinha conhecido o
protagonista dos seus futuros filmes. Adormeci, pouco depois.