Corrosivo,
satírico, mordaz. Nasceu em 1927 e é o decano da caricatura portuguesa.
Editor de uma revista única no nosso País, os seus desenhos são tidos
como picantes, mas ele jamais os considera pornográficos. Uma entrevista
com humor:
Como é que lhe nasceu o gosto pela caricatura satírica?
Sempre
gostei de desenhar. Nos anos 40, segui para a Escola de Belas Artes, no
Porto e cursei Arquitectura. Porém, tinha começado a fazer desenhos
para jornais e acabei por abandonar o curso.
Em que jornais colaborava?
“Diário de Lisboa”, “Cara Alegre” e “O Mundo Ri” foram alguns dos
jornais e revistas onde comecei a fazer desenhos e textos humorísticos,
nos anos 50, alternando com trabalhos em publicidade e anedotas
ilustradas.
O semi-secretismo em que viveu durante o Estado Novo fez com que nascesse um culto em seu redor?
Até
certo ponto, sim. Recordo-me que tinha sempre um número de leitores
fiéis que compravam os meus livros, porque conheciam o tipo do quiosque e
pediam-lhe para que guardasse uma nova obra quando ela chegasse.
Aqueles estavam sempre garantidos.
Nesses livros satíricos, a componente erótica já era elevada?
Nem
por isso. Nos meus livros, aproveitava para dar cacetada no Estado
Novo, criticar a conjuntura política e, principalmente, social. O que me
causou muitos problemas com as autoridades.
Sabia que a PIDE ia censurá-lo?
Eles
estavam sempre muito atentos, por isso tive sempre muito cuidado. Ao
mesmo tempo, também tinha de fazer piadas que as pessoas pudessem
entender, desenhar para que determinada piada passasse nas entrelinhas.
Era um desafio muito grande para mim.
Desenhava já a pensar que determinado cartune podia ser apreendido?
Tinha
essa consciência, pelo que não só eu, como toda a gente no meio,
funcionava por auto-censura. À partida, sabíamos que existiam certos
limites que não podiam ser transpostos. Mas muitas vezes arriscávamos.
Umas passavam, outras não.
Havia vários níveis de censura?
Havia.
E dependia ou do humor do revisor naquele dia ou do local onde
publicasse os desenhos. Por exemplo, certos desenhos para o “Diário de
Lisboa” podiam ser apreendidos e um ou dois meses mais tarde eram
publicados numa revista humorística, que aí já ninguém levava a mal.
Existia essa consciência de quem comprava o quê, e de quais as
restrições em cada tipo de publicação.
Considera os seus desenhos satíricos e fotomontagens de cariz pornográfico?
Todos os grandes humoristas têm desenhos ostensivamente pornográficos. Mas não, não os acho pornográficos.
É verdade que um dia chegou mesmo a dirigir-se à sede da PIDE, na rua
António Maria Cardoso, com um carrinho de mão cheio de livros seus para
entregá-los pessoalmente, poupando-lhes trabalho?
Isso é
puro mito. É mentira. Não sou doido e jamais iria meter-me na boca do
lobo. Mas chegaram a confiscar uma edição de um livro meu antes mesmo de
ele sair da gráfica. Foi uma edição completa ao ar.
Mas não é com certeza mentira que foi preso por três vezes…
Sim.
Por causa dos meus livros e desenhos fui parar em três ocasiões à sede
da PIDE [1962, 1964 e 1966]. Só numa delas é que me meteram um processo,
do qual, felizmente, nunca fui a julgamento devido a uma amnistia do
presidente Américo Tomás.
Sofreu muito nos calabouços?
Não.
Tínhamos celas individuais, para não existir o risco de passarmos
informações, e fui sempre muito bem tratado. De mim não havia nada a
tirar. Tudo o que eu sabia estava escrito nos livros, pelo que o único
grande problema era não saber quanto tempo iria estar lá preso. Podiam
ser três meses ou três anos. Para evitar que tal acontecesse, fugia
sempre que editava um novo volume.
Como é que isso acontecia e onde é que ficava escondido?
Sabia
que, quando o livro saísse, não podia ficar em casa, pois no dia a
seguinte era quase certo que fossem lá bater à porta para me apanhar.
Fazia a mala e ia para um motel na marginal de Cascais, com vista para o
mar e tudo, do qual saía ao fim de uma semana, pois a partir daí já não
havia problemas em regressar a casa.
Depois dessas aventuras, e com o advento do 25 de Abril, tornou-se mais difícil fazer caricatura política?
A
apreciação só pode ser feita pela diferença. Enquanto no Estado Novo o
inimigo era só um, com a democracia eu podia disparar em várias
direcções, fosse à esquerda ou à direita, pelo que havia mais inimigos.
A
15 de Maio de 1974 sai o primeiro número da “Gaiola Aberta”, que tinha
um pouco de tudo: fotonovela (satírica), crónica, banda desenhada... A
liberdade deu-lhe, ou não, mais espaço para a criatividade?
Já
não tinha a polícia política a importunar-me e pude desenvolver um tipo
de humor mais aberto. Mas ainda houve pessoas que, por viverem um
bocado o espírito do Estado Novo, ficaram muito aborrecidas com
determinadas piadas e processaram-me. Creio que foram sempre aquelas sem
nível ou humor, que viram nisso uma oportunidade de ganhar mais
dinheiro. Vejam bem: o [Mário] Soares foi dos tipos mais satirizados por
mim e nunca me pôs qualquer problema.
Na década de 80, teve alguns problemas com a princesa Carolina do Mónaco. Como é que resolveu a situação?
Foi uma fotomontagem, em Novembro de 1981, onde mostrava a princesa Carolina do Mónaco numa pose muito… especial.
O que é que ela estava a fazer?
Aquilo
era uma paródia a um anúncio de uma marca de brandy. Coloquei a
princesa a aquecer o seu copo de uma maneira... original. O principado
do Mónaco processou-me exigindo 400 mil dólares, acho eu. Estive oito
anos para resolver o problema. Mas acabou por me ser retirada a queixa.
Actualmente, sabe-se que ainda tem pendentes alguns processos contra si. É verdade?
Como
já disse, há pessoas sem sentido de humor. As minhas fotomontagens n’O
Moralista’, com várias estrelas da televisão, deram realmente origem a
inúmeros processos. Mas foi tudo algo esporádico, tendo em conta que
aquilo foi uma série temática com mais de vinte personalidades.
Foram
os casos de Catarina Furtado e Bárbara Guimarães, que pareciam posar
nuas na capa d’O Moralista’… Quem visse aquilo sabia logo que era
brincadeira. Mas acabei por chegar a acordo com todos os advogados das
visadas. Todos menos com os de Margarida Marante. Acho triste. Ela devia
era ficar contente porque aquela fotomontagem acabou por promovê-la.
Onde é que foi buscar aquelas fotografias de mulheres nuas?
Tinha algumas fotos espalhadas por aí…
Por
falar nisso, e pegando nas “mulheres, muitas (e bonitas) mulheres” que
povoam o imaginário de Vilhena, segundo o texto de Rui Zink, é no pós-25
de Abril que cresce o lado erótico da sua caricatura?
Não
considero que os meus desenhos sejam todos eróticos. De resto, e quanto a
viver rodeado dessa luxúria, sempre tive mais fama do que proveito
(risos).
Mas as suas personagens femininas estão muitas vezes
despidas ou com umas poucas peças de roupa… Penso que é mais erótico a
existência de uma liga, de uma camisa de noite ou de um soutien um pouco
descaído. O que está por mostrar é sempre mais erótico. Um corpo nu não
faz apelo à imaginação. Já imaginaram as modelos a desfilarem nuas? Não
teria qualquer tipo de ‘glamour’.
É esse o segredo da longevidade das suas revistas de humor?
Não.
Considero que o segredo está no facto de todas as fases de concepção
serem controladas apenas por mim. Sempre trabalhei sozinho, o que me
permite não ter muitas despesas com colaboradores. Até porque os
anunciantes não querem ver os seus produtos publicitados ao lado deste
tipo de textos. Têm muitos preconceitos.
Não há concorrência neste campo das revistas satíricas em Portugal…
...
e é uma pena, porque a concorrência só seria benéfica para mim.
Obrigava-me a fazer sempre melhor. Mas parece que os grandes grupos
económicos de comunicação têm medo de levar a cabo este tipo de
trabalho. Se juntássemos esses caricaturistas que andam por aí a
trabalhar nos jornais, poderia fazer-se coisas muito engraçadas. Mas
muitos anunciantes não gostariam disso.
O povo português perdeu o sentido de humor?
Não sei. Mas é
indecente vivermos num País onde não se publica uma única revista de
humor. Em qualquer país europeu há várias revistas do género.
O DECANO DA ARTE ERÓTICA
José
Vilhena nasceu a 7 de Julho de 1927, em Figueira de Castelo Rodrigo,
filho de um pequeno proprietário agrícola e de uma professora primária.
Passou a infância na aldeia de Freixedas, perto da Guarda. Aos dez anos,
foi para Lisboa estudar. Depois da tropa, foi para a Escola de Belas
Artes, no Porto, e cursou arquitectura. Porém, tinha começado a fazer
desenhos para jornais e abandona o curso a meio. “Diário de Lisboa”,
“Cara Alegre” e “O Mundo Ri” são algumas das publicações onde trabalha
nos anos 50. Na década seguinte, desenvolve a actividade de escritor
satírico. Os seus livros são apreendidos pela PIDE e é preso por três
ocasiões.
Até ao 25 de Abril de 1974, escreve cerca de 70
livros. Nesse ano, sai o primeiro número da sua revista, “Gaiola
Aberta”. Volta à carga com “O Fala Barato”. “O Cavaco” seria a
publicação seguinte, mas a experiência acabou quando Cavaco Silva saiu
de São Bento, em 1994. O seu projecto mais recente é “O Moralista”, onde
adopta métodos de comunicação mais modernos. Independentemente das
críticas ao seu trabalho, Vilhena é hoje considerado um dos maiores
ilustradores, caricaturistas e humoristas da Nação.