sábado, 20 de janeiro de 2018

Duas análises perfeitamente legítimas a "Seventh Heaven", de Frank Borzage.

Feminista-Marxista radical:

Hollywood, desde os seus primórdios, e de formas mais visiveis ou mais insidiosas, tem influenciado e perpetuado, através da “magia das imagens”, a ideologia do patriarcado dominante e de um completo desequilibrio de forças nas relações de poder entre os géneros. Como forma de exemplo, analisemos um filme mudo de 1927, Seventh Heaven, realizado por Frank Borzage. Com a acção situada numa Paris de cartolina pré- Primeira Guerra Mundial, conta-se a estória de uma relação amorosa entre uma prostituta e um limpador de esgotos- um dos mais belos sítios onde um homem pode viver. A prostituta vive com a irmã (igualmente prostituta) num miserável casebre no mais miserável quarteirão da capital francesa. Essa irmã, além de apreciadora de vinhaça e absinto, é portadora de muitos maus fígados (no pun intended), dando regularmente autênticos festivais de pancada na sua desprotegida e fraca companheira de casa. Por aqui logo se vê o modo como Borzage e restantes responsáveis pela produção do filme abordam o género feminino: ou as mulheres são umas bêbadas agressivas ou são umas incapazes de se defenderem dos desmandos alheios. A meias tantas, entra em campo o elemento masculino, o tal trabalhador nos esgotos. Alto, bonitão, forte, empreendedor e portador de uma inabalável confiança; até a despoluir merda, o heteropatriarcado projecta-se com os mais altos valores da clássica beleza grega. Acontecimentos difusos levam a que frágil prostituta e arrogante asseador de trampa vão viver juntos na casa dele. É a partir daqui que os intentos machistas do violador Borzage começam a tecer os fios da sua nojenta doutrina. A prostituta, angelical e ingénua, apaixona-se pelo ensaboador de dejectos, o que já de si é um acto repugnante, mas ainda pior é por aquele mostrar-lhe uma grande indiferença. Dominada por impulsos grotescos que foram lavrados ao longo dos séculos por poetas, cantigas de amigo e de amor e de romanescos, a prostituta tenta ganhar o coração (negro como carvão) do desencardidor de fezes: tratando-lhe da roupa, fazendo-lhe um voluptuoso pequeno-almoço, cortando-lhe o cabelo, enfim, através da horripilante domesticidade submissa a que nós, mulheres, fomos submetidas durante milénios. Entretanto, o marialva, notando a cobardia da prostituta, diz-lhe para nunca ter medo, para olhar sempre para cima, porque ele, como representante do inenarrável género, “nunca tem medo e olha sempre para cima”. E então a prostituta, outrora débil e psicologicamente adoentada, torna-se, através dos incentivos masculinos, um poço de força e resiliência, bem manifesto quando decide vingar-se na sua irmã alcoólatra com o mesmo chicote com que esta lhe esfregava a pele (um momento que muito gozo deve ter dado ao lambedor de beiços Borzage). Temos, portanto, uma mulher que só se consegue libertar dos seus medos através dos encorajamentos masculinos, e não por uma auto-afirmação alheia a instigações do macaco com quem vive. Infelizmente, esse cortar das correntes que a agrilhoavam não é suficiente para ela também se libertar do aprisionamento de amor ilusório que sente pelo transgressor. Concluindo, Seventh Heaven pode até advogar uma ideia de mulher forte e corajosa, desde que tal não a impeça de continuar subjugada ao controlo masculino. 

Valerie Solanas



Um ser humano:

Obra-prima.